BIBLIOTECAS PÚBLICAS FERENGIS: LIMITAÇÕES DE ATUAÇÃO PROFISSIONAL
Igor Mendes - 27 de março de 2025
Durante discussões referentes ao universo biblioteconômico, não é incomum a presença de argumentos extremos, principalmente quando tratamos da biblioteca pública enquanto objeto, talvez por ser a com menor número de recursos (de todos os tipos), talvez por ser a mais estagnada das modalidades, talvez por ser a que possui a maior potencialidade de ser e existir. De um lado, usualmente encontram-se aqueles que defendem a existência da biblioteca tradicional e, do outro, aqueles que almejam a utopia. Por fazer parte do segundo grupo, resolvi detalhar uma experiência vivenciada que me fez criticar essa posição.
Estou acostumado a criticar constantemente o primeiro grupo, ou melhor dizendo, os pensamentos associados à biblioteca tradicional, ou seja, uma sala quadrada destinada à guarda e proteção (longe e livre de dedos curiosos e mentes ligeiras), repleta de livros e poeira, cada vez com mais poeira do que livros inclusive. Pois até enquanto deposito tem se tornado obsoleta.
A questão é que, por imaginar tudo o que uma biblioteca pública poderia ser, por vezes ultrapasso alguns limites. A biblioteca pode ser utilizada em processos de educação? Com cursos ou aulas nela sendo ministradas? Claro. A biblioteca pode exibir filmes? Fortalecendo a construção cultural por meio do audiovisual em um município? Sem nenhum problema. Uma biblioteca poderia ser um espaço para jogos de aposta e consumo de bebidas alcoólicas? Óbvio que não.
Para ser justo comigo mesmo, nunca defendi tal feito, porém encontrei essa exata situação enquanto mergulhava em cosmo profundo presente no universo artístico de Star Trek (Jornada nas Estrelas). Caso algum leitor não esteja familiarizado com a franquia ficcional criada por Eugene Roddenberry (1921—1991). Essa, por sua vez, retrata por meio de óperas espaciais, viagens interestelares com temáticas como aventura, drama, mistério e a mais importante para este texto, a comédia.
Em uma das últimas adaptações (em animação) de Jornada nas Estrelas, a série Star Trek: Lower Decks (Jornada nas Estrelas: Subalternos) possui o foco quase que absoluto na comédia, elevando alguns estereótipos estabelecidos dentro da franquia ao extremo. Um desses estereótipos está relacionado à cultura de uma das dezenas de espécies alienígenas sencientes existentes nas estórias, a obsessão mercantil dos Ferengis.
A animação retrata de modo cômico a utilização da Ferenginar Historic Public Library (uma biblioteca pública e histórica localizada em Ferenginar, planeta natal dos Ferengi) como um centro de socialização e entretenimento voltado para o público adulto (uma espécie de cassino). Neste sentido, a biblioteca passa a ser utilizada como expressão da cultura daquele povo, evidenciando a negociação, o lucro e a enganação, presentes na personalidade de cada espécime Ferengi.
É claro que a experiência retratada pela Ferenginar Historic Public Library não me coloca do outro lado da discussão, pois, embora a biblioteconomia seja corriqueiramente observada de forma dicotômica, no pragmatismo de sua atuação cotidiana nunca foi e nunca será reduzida a isso.
Os percalços encontrados no dia a dia do profissional bibliotecário esmagam muitas das possibilidades do que uma biblioteca pública poderia vir a ser. Obviamente que isso não deve ser associado a uma lógica derrotista e conformista, mas crítica de mudanças plausíveis. Como aponta Almeida Júnior (2013; 2021), a biblioteca pública subversiva, alinhada a outros modelos de bibliotecas alternativas (populares, comunitárias, operárias e multiculturais), possui elementos claros a serem quebrados.
Alguns dos exemplos são: O usuário, na prática, não é o principal objetivo da biblioteca; Todo o trabalho é voltado para os suportes; Não há participação efetiva da comunidade na gestão da biblioteca. Neste sentido, as discussões referentes à potencialidade da biblioteca não podem ultrapassar o próprio escopo da biblioteca, mas o que seria esse escopo?
A resposta mais óbvia seria a própria sociedade, visto que a biblioteca é um reflexo da sociedade na qual se encontra, porém é viável replicá-la na biblioteca? Uma creche poderia, por exemplo, ser instalada em uma biblioteca, para os filhos dos funcionários que ali trabalham? A princípio sim, mas já não existem creches no município a fora? Então, a biblioteca teria como função fazer apenas aquilo que ainda não existe? Aquilo que ninguém mais quis fazer? Apenas oferecer suporte?
Como já debatido anteriormente (Silva, 2025), creio que a biblioteca pública deveria se comportar como entidade ativa de toda movimentação informacional no município em que se encontra localizada. Porém, um acontecimento como este talvez esteja mais distante de acontecer do que uma biblioteca coberta de placas neon sendo utilizada para atrair dinheiro.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Biblioteca pública: avaliação de serviços. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2013.
ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Biblioteca pública: ingênua, astuta e crítica. Revista Eletrônica da Associação dos Bibliotecários e Profissionais da Ciência da Informação do Distrito Federal, Brasília, v. 5, n. 1, p. 48–67, jan./jun. 2021. Disponível em: https://brapci.inf.br/v/166250. Acesso em: 27 mar. 2025.
FREITAS, E. P. Star Trek: utopia e crítica social. Rio de Janeiro: Autografia, 2019.
PARTH FERENGI'S HEART PLACE (temporada 4, ep. 6). Star Trek: Lower Decks. Diretor: WILLIAMS, B.; Roteirista: CRAWFORD, C. Estados Unidos: CBS All Access; Paramount+, 2023. (25 min).
SILVA, I. M. O papel inclusivo das bibliotecas públicas do interior paulista: mediação da informação direcionada à pessoas com deficiência visual. 2025. 194 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marília, 2025. Disponível em: https://hdl.handle.net/11449/261515. Acesso em: 27 mar. 2025.